De modo geral, há uma sobreposição considerável entre condições ginecológicas e doenças crônicas, particularmente as doenças cardiovasculares. Da mesma forma, distúrbios endócrinos como, por exemplo, síndrome do ovário policístico, menopausa precoce, endometriose, miomas uterinos e histerectomia são associados ao aumento de risco para doenças cardiovasculares. A endometriose, por exemplo, está associada ao aumento da inflamação, estresse oxidativo e um perfil lipídico adverso. A síndrome do ovário policístico (SOP) afeta de 6 a 16% das mulheres e é um transtorno endócrino crônico, cujos sintomas centrais são a anovulação, o hiperandrogenismo e distúrbios metabólicos. A SOP foi associada a muitos fatores de risco para doenças cardiovasculares, incluindo tolerância à glicose diminuída, dislipidemia, hipertensão, síndrome metabólica e diabetes tipo 2. Contudo, o diagnóstico de SOP costuma ser realizado em mulheres jovens, de até 30 anos, e vários fatores de risco cardiovascular associados à SOP parecem melhorar ao longo do tempo, isso pode estar relacionado à modificação oportuna de fatores de risco cardiovascular, um efeito cardioprotetor de uma menopausa tardia, ou outros fatores genéticos desconhecidos. Recomenda-se que todas as mulheres com SOP devem ter uma avaliação da pressão arterial, exame de glicose e do perfil lipídico em jejum, além de dieta e um estilo de vida saudáveis.
O uso de pílulas anticoncepcionais orais combinadas aumentam consideravelmente o risco de trombose venosa e acidente vascular cerebral. Mulheres na pré-menopausa com doenças cardíacas ou sangramento uterino anormal, e que necessitam de terapia com anticoagulante, devem receber indicações seguras caso desejem fazer uso de contraceptivos.
Fatores genéticos como a mutação nos genes BRCA 1 e 2, associado à maioria dos câncer de mama hereditários e também ao câncer de ovário, também oferece maior risco de doença cardiovascular. O gene BRCA1 é considerado um importante guardião da função cardíaca e da sobrevivência após isquemia e estresse oxidativo, tornando os portadores de mutação mais suscetíveis à ocorrência de insuficiência cardíaca.
Quanto às pessoas trans, sua prevalência atualmente é de 0,6% na população adulta. Terapia de afirmação de gênero, incluindo hormônios sexuais, permite uma vida em congruência com uma identidade de gênero pessoal, que significativamente melhora a qualidade de vida. Atualmente com o maior envelhecimento percentual da população transgênero, as evidências sugerem que tanto homens quanto mulheres trans gêneros sofrem maiores riscos para várias manifestações de doenças cardiovasculares em comparação com outros grupos de cis gêneros. No final da década de 1990, os relatórios mostraram um aumento de até 20 vezes de trombose venosa profunda com o uso de etinil-estradiol oral e isso levou à cessação do uso deste medicamento, neste contexto, desde então, o estradiol tornou-se o estrogênio preferido para o tratamento de mulheres trans. Contudo, o efeito hipercoagulável do estrogênio pode ser um dos mediadores do aumento do risco de doenças cardiovasculares em mulheres transexuais. O risco de trombose venosa profunda em mulheres trans, no entanto, é diferente em comparação às mulheres cis gênero, nas quais este risco está principalmente presente no primeiro ano de uso e, posteriormente, reduz ao longo do tempo. O risco em mulheres trans aumenta ao longo do tempo. O tratamento concomitante de mulheres transexuais com agentes redutores de androgênio (por exemplo, espironolactona ou acetato de ciproterona) permite administração de doses mais baixas de estrogênio exógeno. Mulheres transexuais recebendo terapia hormonal não têm maior risco de infarto do miocárdio, mas estão em maior risco de acidente vascular cerebral e trombose venosa profunda. Respectivamente 80% e 355% a mais do que em homens cis gênero. O AVC isquêmico parece mais pronunciado após 6 anos de uso contínuo de estrogênio e continua a aumentar depois disso. Visto que deixar de tomar os hormônios da transição de gênero não é uma opção para as pessoas trans, elas devem ser sempre encorajadas a reduzir os riscos de doenças cardiovasculares a partir de adequações no estilo de vida. Os benefícios psicossociais da terapia hormonal, com uma imagem corporal melhorada, podem contribuir para estimular escolhas mais saudáveis de estilo de vida. Por isso o acompanhmento de pessoas trans deve passar por uma equipe multidisciplinar.
Lizanka Marinheiro, Md, Phd
Endocrinologista – Profa. Pós- graduação dos Programas
Pesquisa clínica aplicada à saúde da mulher – e Saúde da mulher
Instituto Fernandes Figueira – FIOCRUZ
Fonte:
Maas AHEM, Rosano G, Cifkova R, Chieffo A, van Dijken D, Hamoda H, Kunadian V, Laan E, Lambrinoudaki I, Maclaran K, Panay N, Stevenson JC, van Trotsenburg M, Collins P. Cardiovascular health after menopause transition, pregnancy disorders, and other gynaecologic conditions: a consensus document from European cardiologists, gynaecologists, and endocrinologists. Eur Heart J. 2021 Jan 25:ehaa1044. doi: 10.1093/eurheartj/ehaa1044. Epub ahead of print. PMID: 33495787.